FMI e o Estado de Exepção!

 “A ideia é destruir o que tem sobretudo valor de uso e favorecer a apropriação privada, a preço de saldo, do que tem valor de uso e muito valor de troca.” João Rodrigues
 

vale1.jpgA anunciação de um pedido nacional para uma intervenção externa (curioso como alguns teimam em chamar-lhe ajuda…) da FEEF e do FMI não terá sido propriamente uma surpresa para a maioria dos portugueses. A dúvida que poderia restar seria o timming dessa iniciativa, o que nos obrigou a viver os últimos meses numa espécie de limbo existencial, misto de ansiedade e de suspensão pelos dias que hão-de vir, num futuro próximo.

É disparatada, quanto a mim, a teimosia dos média em estabelecer comparações económicas e sociológicas com aquilo que aconteceu ao país em 1983, aquando da última intervenção externa do FMI, pois não me parece razoável comparar o Portugal de então com aquele que hoje somos. Também não me preocupa serem “outros” a fazer aquilo que “nós” não soubemos fazer. Aquilo que me preocupa é saber como poderão sobreviver os portugueses à pressão deste torniquete transnacional, que transforma os indivíduos em números e, por isso, insensível é aos seus problemas e às suas condições de vida. Nesta lógica, não importará até quando e até onde nos vão retorcer para conseguirem aquilo que já há muito procuram.
Convém não esquecer que se aqui chegamos é porque fizemos determinado caminho. Caminho esse que percorremos, alegres e sorridentes, mas ignorantes do verdadeiro sentido e objectivo daqueles que nos conduziam por aí. Não terá sido por falta de avisos e alertas de alguns eminentes especialistas, entretanto enxovalhados na praça pública e mediática, nem por falta de democracia que os portugueses teimaram em eleger os mesmos de sempre para nos governar. Tal como alguns afirmam, teremos aquilo que merecemos, mas não sejamos inocentes, pois não esteve propriamente nas mãos e nos votos dos portugueses a possibilidade de arrepiar caminho e escolher outro destino que não este. Senão vejamos:
A escalada globalizante acompanhou a apropriação da palavra “globalização”, que, supostamente, deveria explicar a dialéctica fragmentação/globalização. Esta palavra veio directamente das teorias japonesas da gestão pós-fordista e, inicialmente, começa por ser utilizada pelos especialistas de marketing para designar a segmentação dos públicos-alvo ou a divisão de grandes segmentos transfronteiriços de comunidades de consumidores com os mesmos sócio-estilos, os mesmos modelos de consumo. Foram os “evangelistas do mercado” e os think tanks neoliberais, tais como o Adam Smith Institute, em Inglaterra, cujo objectivo consistiu em desenvolver uma reflexão capaz de pesar sobre as políticas públicas, quem concorreram explicitamente para o sucesso da sociedade prometida pela “revolução neoliberal”, projecto de uma nova ordem em que o mercado se torna o principal árbitro de todas as transacções, quem trouxeram para primeiro plano um fascínio vanguardista pela figura do consumidor, relegando para planos inferiores a figura do cidadão. A doutrina do livre-câmbio da “soberania absoluta do consumidor” reconheceu-se no perfil de um telespectador que se tornou autónomo graças ao seu poder intangível de determinar o sentido dos programas.

A marginalização do cidadão pelo consumidor realizou-se à custa da interrogação sobre os agentes de produção, o mercado, o Estado e a decomposição/recomposição do Estado-Nação, mas também sobre o novo estatuto do consumo, cada vez mais integrado nas matrizes industriais do pós-fordismo. O consumo torna-se ele próprio em produção de informações para o produtor. A relevância que irá ser gradualmente atribuída ao termo “sociedade civil” exprime, igualmente, essa necessidade de uma “caixa-negra”, tapa-misérias de um vazio de problematizações. Mistificada como espaço liberto da diversidade, da pluralização das identidades fragmentadas, esta sociedade civil surge como antítese do Estado-Nação. Este culto da sociedade civil deslegitimou o próprio princípio de políticas públicas.
Finalmente o esforço neoliberal parece ter alcançado o seu fim (!?) com a desregulamentação total dos mercados, com o esvaziamento dos estados soberanos e com o despojamento da cidadania individual, naquilo que Giorgio Agamben (2010) designa de identidade sem pessoa. O mesmo autor tem razão quando afirma que as democracias ocidentais - a própria civilização ocidental contemporânea - criaram voluntariamente um estado de emergência permanente que, progressiva e metodicamente, tem vindo a despir de cidadania os seus indivíduos. Paradigma vigente desde então e até ao presente.
Mesmo perante a perspectiva bem realista de virmos a viver, durante um período ilimitado, num estado de excepção - com abolição ainda que provisória do poder legislativo e do poder executivo, num vazio de direito e numa zona de anomia onde a distinção entre o que é público e o que é privado é desactivada, onde a norma se tornará indiscernível da excepção e as liberdades individuais poderão ser suspensas – prefiro acreditar que a presença de forças estranhas e ilegítimas não determinará o nosso humilhante aprisionamento nesse estado de excepção.

Não posso terminar sem antes referir o ridículo que esta infeliz situação significa para todos aqueles que nos têm governado nas últimas décadas. É soberba a incompetência e é também magnífica a desresponsabilização desses ilustres intervenientes. E engraçado seria, se não demasiado triste e vergonhoso, todos eles não perderem a face e, qual imaculadas, apresentarem-se sempre impolutos e como fazendo parte da solução